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Foto do escritorAparecido Galindo

MPB - nossa jaboticaba musical


Em determinado momento histórico, nossa burguesia se viu num dilema em relação a música. Caso continuasse a ouvir somente a música das elites estrangeiras, seria taxada de submissa. Mas se aderisse ao baião ou ao samba, correria o risco de ser confundida com o populacho, o que significava para ela, algo como, uma segunda morte. Daí surgiu a necessidade de criar uma “música” que se apropriasse de nossas tradições musicais, com um certo verniz de intelectualidade. Coube justamente a artistas oriundos da burguesia (Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli, Vinicius de Moraes, etc.) todos homens e brancos, lançarem a pedra fundamental da MPB.


Parece estranho, que uma música que se arvora como popular tenha sido gestada em um dos metros quadrados mais caros do país. E através de homens, educados em escolas onde a cultura francesa, inglesa e americana eram o modelo a ser copiado. Soa esquesito, mas não é. Por que o que viria a ser a base para a MPB, já existia no mínimo há um século. Os ritmos, os cantos, as melodias, já estava tudo lá. O choro, o samba, o baião, já era conhecido das classes populares, eram parte integrante de seu cotidiano, vivenciado nas favelas e nas zonas rurais do país. Mas a nossa classe média entendia que era preciso “civilizar” aquela bagunça. Havia muito corpo naquela música, então deram-lhe uma mente. Como se corpo e mente fossem coisas que pudessem ser separadas. O que a MPB fez, ou tentou fazer, foi embrulhar a nossa música na racionalidade eurocêntrica. 


O samba que o negro compunha numa mesa de bar, fazendo uso de uma caixa de fósforo e da memória, era um insulto para quem levou anos estudando teoria musical e composição e que no máximo, paria insossos prelúdios. O burguês carioca então, munido de sua racionalidade platônica, incapaz de vivenciar e perceber o seu corpo, entupiu a música de acordes dissonantes, arranjos e teclas de piano, dando ao canto dos terreiros e malocas uma cara que fosse aceitável paras as elites culturais e econômicas. Agora sim, elas podiam ouvir música brasileira sem trair o seu status social e seu racionalismo coxo.


Um dos grandes mistérios dessa música é que, não bastava compor ou cantar, estudar e pesquisar a nossa cultura, mas sim, compartilhar do mesmo habitus cultural da burguesia. Outra coisa também importante, era não ser popular demais. Vender milhões de discos estava fora de questão. Fazer shows que atraissem milhares de pessoas, era considerado um fracasso como artista. Que até podia ser negro, mas com um comportamento que seguisse os canones dos brancos, ser um Wilson Sinomal, nem pensar. Podia ser nordestino como um João Gilberto, mas que soubesse comer de garfo e faca, por favor. Aceitar um Luiz Gonzaga no grupelho, já era demais!


Assim como a burguesia é a mais segregadora das classes sociais, pelo seu desejo de ascender as elites e o medo de baixar ao nível da pobreza, sua música só podia também segregar. Ainda hoje utiliza-se da falácia de música boa e música ruim no Brasil, tendo por métrica a MPB. Nunca se discute porque cantoras do quinhão de Ângela Maria não são MPB, enquanto uma Adriana Calcanhotto o é. Ou alguém ainda duvida que um simples arroto do Chico Buarque é tido como superior a toda a obra de Nelson Gonçalves? Mas a burguesia não pode simplesmente dizer que a música que a classe operária escuta é ruim, correria o risco de ser vista como racista e preconceituosa. Então, criou todo um aparato, utilizando as técnicas capitalistas de convencimento, o que para ela é bastante fácil já que é ela quem tem acesso às universidades, à mídia e ao mercado cultural. Então aquilo, que era uma imposição, passa a ser visto como algo natural. Com o tempo, a burguesia, neoliberalista até o osso, troca de pele, para continuar em evidência e manter os seus privilégios.


E eis que a MPB atravessou as décadas como um grupo segregador, trancado em seus pequenos recintos, bancados com o dinheiro público ou de mecenas, porque sozinha, ela não se paga. Uma música que não se ouve, mas que dita o que deve ser ouvido. Uma música burguesa até o tutano, mas que precisa usar a máscara do povo. Uma jabuticaba que floresceu em nossas terras, mas que não tem nem o sabor, nem a espontaneidade de nossa tão autóctone fruta.


Aparecido Galindo, 19/11/2024 - Diadema - São Paulo


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